quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Observações sobre a PEC 51 – que reorganiza o modelo policial no Brasil

Entre os estudiosos de polícia no Brasil é antiga e majoritária a convicção de que o modelo de organização policial estabelecido pela Constituição de 1988 é falho e impede o aperfeiçoamento do sistema de segurança pública. De alguns anos para cá ela finalmente começou a se alastrar no meio político e mesmo policial. Entre os aspectos mais problemáticos do atual arranjo institucional está a previsão de duas polícias estaduais: uma polícia civil com funções de polícia judiciária, comandada por delegados bachareis e uma polícia militar com funções de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública.

O papel das guardas municipais, limitado à proteção de seus bens, serviços e instalações é apontado também como um obstáculo, não condizente com o papel atual da maioria das Guardas. Com relação à dualidade organizacional é preciso lembrar que em quase todas as polícias do mundo existem os ramos investigativo, não uniformizado e o ostensivo, uniformizado. A diferença é que em geral se tratam de dois ramos de uma mesma árvore, ou seja, fazem parte da mesma organização policial, que seleciona, treina e aloca os policiais para um ou outro ramo, dependendo das vocações pessoais e necessidades da organização.

As divisões entre os ramos tampouco é estanque: durante a carreira um policial pode trabalhar ora no policiamento ostensivo ora no velado e esta variação na experiência é considerada enriquecedora para o entendimento da complexa questão criminal. A formação básica inicial é a mesma e as especializações são feitas na medida em que o policial progride na carreira e opta por uma ou outra função. Todos que chegaram ao topo da hierarquia começaram de baixo e passaram em algum momento pelo policiamento ostensivo de rua, uniformizado.

A entrada de todos ocorre pela base e através de cursos e concursos, todos estão aptos a chegar ao topo da instituição. Existem exceções – ou “entradas laterais” – quando a polícia necessita de profissionais já formados em alguma área específica. Neste caso, ao invés de um curso regular básico de alguns anos, a participação na Academia de Polícia pode ser abreviada, mas assim mesmo é obrigatória. Existe uma hierarquia inspirada nos postos das organizações militares, assim como existe uma hierarquia na Igreja ou no mundo acadêmico, mas a analogia termina ai: as hierarquias ordenam a cadeia de comando, funções e remuneração mas são de natureza civil e fazem parte de uma única carreira policial.

Esta breve descrição geral resume os conceitos de carreira única e ciclo completo de polícia, observado em boa parte dos departamentos de polícia do ocidente, objeto, entre outros, da PEC 51, apresentada pelo Senador Lindbergh Farias, com consultoria do sempre instigante antropólogo Luiz Eduardo Soares. A proposta é ampla e aborda temas como as responsabilidades federais na segurança, princípios das políticas de segurança e cria novos entes, como os Ouvidores. Com o objetivo de aperfeiçoar a proposta, excelente no mérito, gostaria de fazer alguns comentários sobre alguns aspectos complexos presentes na PEC 51. - no que tange ao papel federal na segurança o texto sugere uma função padronizadora, capacitadora e diretiva, mas não menciona especificamente o papel financiador, através dos diversos Fundos Nacionais, do orçamento da União ou de outras fontes que garantam este apoio federal aos estados e municípios.

Deixa de mencionar também o papel operacional do Governo Federal através da Força Nacional de Segurança Pública, que não consta entre os órgãos do sistema de segurança pública na proposta. Seria conveniente que a PEC sugerisse, ao menos nas considerações anexas, que estas funções federais poderiam ser mais bem desempenhadas se houvesse um órgão federal específico, como um Ministério da Segurança, cuja necessidade é amplamente reconhecida, tanto quanto o fim do modelo policial bipartido. - o parágrafo único do art. 143-A, propõe que as polícias “poderão recorrer ao uso comedido da força, segundo a proporcionalidade e a razoabilidade”. O uso legítimo da força pelas polícias, inclusive o letal, é admitido universalmente em certas circunstâncias, como proteger a vida do policial ou de outrem, de modo que o adjetivo “comedido”, embora sempre desejável, tornaria questionável todo uso da força letal; - o parágrafo 6ª do novo art. 144 § 6º determina que “No exercício da atribuição prevista no art. 21, XXVI, a União deverá avaliar e autorizar o funcionamento e estabelecer parâmetros para instituições de ensino que realizem a formação de profissionais de segurança pública”.

Acreditamos que esta formulação está em contradição com o objetivo maior de permitir que os Estados organizem de forma flexível sua(s) polícia(s). O governo federal pode estabelecer diretrizes, currículos mínimos e incentivar sua adoção pelos Estados, mas talvez não seja conveniente atribuir ao Governo Federal a prerrogativa de autorizar ou não o funcionamento das instituições de ensino, limitando a autonomia dos Estados. - Art. 144-a “§ 1º Todo órgão policial deverá se organizar em ciclo completo, responsabilizando-se cumulativamente pelas tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de persecução criminal.” O ciclo completo não deve ser compulsório mas uma opção para as polícias que o desejarem. Isto permitiria inclusive a manutenção do modelo atual, para os Estados e Municípios que assim desejarem. Melhor seria substituir o termo “deverá” por “poderá”, ou a exclusão completa do texto; “- Art. 7º O Estado ou Distrito Federal poderá, na estruturação de que trata o § 3º do art. 144-A da Constituição, definir a responsabilidade das polícias: II – sobre grupos de infração penal, tais como infrações de menor potencial ofensivo ou crimes praticados por organizações criminosas, sendo vedada a repetição de infrações penais entre as polícias.”

A definição das responsabilidades das polícias por grupos de infração penal é um dos aspectos mais complexos da proposta e o exemplo do texto já demostra esta complexidade: assim, crimes praticados por organizações criminosas (na verdade crime organizado é um modus operandi e não apenas um tipo de infração) envolvem uma miríade de infrações, inclusive infrações de menor potencial ofensivo, como o jogo do bicho. Neste caso, de quem seria a responsabilidade, já que o jogo de azar é uma infração menor cometida por organização criminosa?

A vedação da repetição de infrações penais entre as polícias pode ser limitadora em alguns casos, como o combate ao tráfico de drogas ou crimes cibernéticos; talvez a atuação concorrente fosse adequada, na medida em que pode envolver atuação interestadual e internacional. Melhor seria possibilitar a competência concorrente, para alguns tipos de infrações, sem vedar constitucionalmente a repetição; “- Art. 8º Os servidores integrantes dos órgãos que forem objeto da exigência de carreira única, prevista na presente Emenda à Constituição, poderão ingressar na referida carreira, mediante concurso interno de provas e títulos, na forma da lei.” Este artigo obriga na prática todos os policiais atuais, já concursados, a prestarem novos concursos para entrar nas novas organizações policiais. Melhor se as novas regras passassem a valer apenas para os novos ingressantes e os atuais fossem automaticamente incorporados nas novas carreiras, apenas ajustando os cargos atuais à nova estrutura e aos novos cargos. Como se vê, não é tarefa fácil mudar radicalmente o modelo atual – bastante insatisfatório – embora existam mundo afora modelos inspiradores a serem seguidos.

A PEC 51 inspira-se nestes outros modelos e é bastante corajosa; na pior das hipóteses incentiva a sociedade brasileira a repensar o modelo atual e só por isso já contribui sobremaneira para o debate. Ela vem dar uma chacoalhada no cenário de inanição e mesmice. Mas pode ser aperfeiçoada e as sugestões e observações aqui manifestadas devem ser encaradas como críticas construtivas a este debate, que é essencial para aprimorar o modelo atual.

keepinhouse

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