quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Meu depoimento sobre as armas de fogo


Passei a prestar atenção na questão das armas de fogo quando trabalhava no Ilanud no final dos anos 90 e a ONU publicara um estudo internacional sugerindo que o Brasil era o pais onde proporcionalmente mais se usava armas de fogo para cometer homicídios. Havia uma percepção difusa de que as armas estavam de algum modo ligadas ao nosso crescente número de assassinatos – tanto que em 1997 o porte ilegal passa de contravenção a crime e é criado o SINARM – mas pouquíssimos estudos empíricos sobre o tema.

Como sempre, sofríamos do crónico problema da falta de dados e de pesquisas para embasar políticas públicas. A Lei 4937 de 1997 produziu um forte impacto na venda de armas no país e para reclamar da queda de 40% no faturamento, a indústria começou a divulgar seus dados. Na literatura internacional aventava-se a hipótese de que a taxa de suicídios local tinha forte relação com a disponibilidade de armas e agora dispúnhamos de dados para testar esta correlação no Brasil.

Este foi meu primeiro levantamento sobre o tema em 1999: tomamos as vendas anuais de armas da Taurus em 1997 e 1998, por Estado, calculamos a taxa de armas por habitante e comparamos com a taxa de suicídios disponibilizada pelo Datasus. E ali estava: confirmando um levantamento internacional que Martin Killias fizera anos antes com 18 países, encontramos uma forte correlação (r=.58) entre a quantidade de armas vendidas nos estados pela Taurus e suas respectivas taxas de suicídio. Não havia o tal “efeito displacement” (que afirmava que “quem quer se matar se mata de qualquer jeito”). Nos Estados com menos armas, menos gente se matava.

Hoje já está estabelecido que a relação entre suicídios e disponibilidade de amas é tão grande que se você não sabe ao certo quantas armas existem em circulação num lugar, pode-se tomar a taxa de suicídio como uma medida substituta. Esta foi a estratégia seguida por Daniel Cerqueira do IPEA, aliás, para corroborar os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre a queda dos homicídios em São Paulo, em sua tese de doutoramento.

O principal motivo para se portar arma, segundo as sondagens de opinião, é a proteção contra crimes. A segunda razão é “se sentir forte” e a terceira “fazer boa impressão com os colegas”, como revelou a pesquisa de Nanci Cardia do NEV em 1999. Mas será que a arma de fogo realmente protege quem a usa ou aumenta o seu risco? Esta foi a segunda oportunidade que tive de estudar o tema, como colaborador em 2000 de uma pesquisa conduzida por Jaqueline Signoreto e Renato Lima para a Secretaria de Segurança de São Paulo. Em 1999, Ignacio Cano do Iser já estudara milhares de roubos no Rio de Janeiro e concluíra que o risco de levar a pior durante um assalto – ser ferido ou morto – era maior para quem tinha arma de fogo e reagira. Os dados de São Paulo iam na mesma direção: segundo o DataFolha cerca de 18% dos paulistas andavam armados. Entre as vítimas de latrocínio, 28% estavam armadas, sugerindo, portanto, que o uso da arma aumenta o riso de ser morto num assalto. O sociólogo Claudio Beato acaba de divulgar neste mês um estudo feito com 78 mil vítimas corroborando as conclusões destes levantamentos anteriores, usando dados da pesquisa nacional de vitimização.

A mídia dava muita atenção na época ao armamento pesado em mãos dos traficantes e os defensores das armas argumentavam que o grande problema da violência era causado por estas armas importadas, de grosso calibre, nas mãos dos criminosos. Esta discussão acabou pautando uma série de pesquisas sobre o tipo de armas envolvidos nos crimes. Para a surpresa geral, os grandes vilões não eram os fuzis AR-15 mas os bons e velhos revolveres Taurus e Rossi, calibres .32 ou .38. Os bandidos valorizavam a indústria nacional! Foi o que detectou nova pesquisa do Iser de 2000 analisando 590 armas apreendidas no Rio em razão de crimes: 57% Taurus e 31% Rossi. Em 2004 me encontrava na Secretaria de Segurança de São Paulo e pesquisando 15 mil armas apreendidas pela polícia encontrei números bastante parecidos: 56% Taurus e 14% Rossi. Lavantamentos do Sou da Paz trazem os mesmos padrões. Caia por terra assim o argumento de que o perigo vinha de fora...

Estes e outros estudos foram subsidiando o debate sobre a questão das armas de fogo e seu envolvimento com os níveis intoleráveis de homicídios no Brasil, e que ajudaram a criar um cenário favorável para a aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003. Não se trata, como alguns afirmam, de medida Petista para preparar a revolução bolivariana no Brasil. A discussão começou bem antes e quase todo o projeto foi elaborado durante o período FHC, sendo apenas fruto da dinâmica congressual o fato de ter sido aprovado no primeiro ano da gestão Lula. A medida já constava do Plano Nacional de Segurança Pública de 2000, do qual tive oportunidade de participar. Acompanhei de perto este processo, tanto como conselheiro do Instituto Sou da Paz quanto como diretor da Senasp no último ano do governo FHC e de fato o controle de armas era uma questão consensual na comunidade acadêmica bem como entre os principais partidos.
(Lembro de passagem que durante este período como gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública autorizei a compra de milhares de armas pelas polícias, que na minha opinião são as únicas que devem portá-las)

Na época da aprovação do Estatuto acabara de assumir a coordenação da CAP-SSP, em São Paulo, onde os homicídios começavam a declinar lentamente desde a Lei de 1997, que transformou o porte ilegal de contravenção em crime. Os dados de 2004 começaram a chegar e as diferenças eram nítidas: apesar do aumento das revistas e das buscas e apreensões, a polícia conseguia apreender cada vez menos armas. A proibição do porte e o aumento da punição e da fiscalização fizeram as armas sairem de circulação. Todas os indicadores mostravam isso: o número de armas perdidas pela população também cairá, junto com as apreensões de armas ilegais.

Como consequência da diminuição das armas em circulação – a queda dos homicídios medidos pelo Infocrim e pelo Datasus – teve uma aceleração abrupta após dezembro de 2003. Estamos falando aqui de uma mudança de patamar, de uma quebra de nível na série histórica. Usando series temporais e diversos procedimentos metodológicos (teste de Chow, análise de intervenção, modelos ARIMA, etc.) estimamos em 2005 que o Estatuto diminuiu em -12,9% o volume de armas apreendidas no Estado, em -14,8% os homicídios na Capital, em -17% as agressões intencionais com armas de fogo (Datasus), em -17,8% os latrocínios no Estado e em 25,9% na Capital.

Nesta época, munido dos dados do Infocrim, passei as estudar a morfologia da queda e a investigar todos as eventuais hipóteses para explicar o que ocorria em São Paulo, que apresentava quedas na criminalidade similares às festejadas quedas de Nova Iorque, Cali ou Bogotá. Os dados mostravam que a queda era generalizada no Estado, abrupta e ocorria em áreas ricas e pobres, afetava jovens e velhos, homens e mulheres, brancos e negros. A data do ponto de inflexão, a velocidade, força e características da queda sugeriam que o Estatuto do Desarmamento era o melhor candidato para explicar o fenômeno em São Paulo, ao lado de outras variáveis de alguma importância, como a demografia, uso do Infocrim, aumento na resolução de crimes de homicídio, melhorias na gestão das polícias, etc.

Diversos estudos, utilizando fontes e metodologias diferentes, corroboram o que encontrávamos na SSP. O Ministério da Saúde estimava em 2006 que o Estatuto invertera a tendência de crescimento linear da década anterior e que o impacto era da ordem de 24%. Um grupo de epidemiologistas publicou na Health Affairs um estudo relacionando a queda no número de hospitalizações ao Estatuto. Utilizando dados da SSP-SP, diversas teses acadêmicas corroboravam os achados iniciais, como a de Gabriel Hartung, de Marcelo Justus dos Santos e de Daniel Cerqueira, três economistas que utilizam econometria pesada para garantir a robustez dos achados. Todos eles encontraram impactos significativos do Estatuto do Desarmamento sobre os homicídios em São Paulo.
Os ganhos não são permanentes. As armas estão guardadas nas casas e quando crescem os roubos e aumenta a sensação de insegurança, elas voltam a circular, como durante a crise econômica de 2009, que criou um “soluço” na tendência de queda dos homicídios em São Paulo. Trata-se de uma análise racional de custo-benefício: quando o cidadão se sente inseguro, encara os riscos de andar armado
Isto ajuda a entender porque os efeitos do Estatuto foram desiguais pelo país. Num dos últimos escritos sobre o tema num artigo para a Revista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugeri em 2011, com o apoio de evidências, que os efeitos foram maiores nos Estados do Sudeste e menores no Nordeste em razão das diferentes conjunturas e dinâmicas socioeconômicas destas regiões: onde o crescimento econômico foi acelerado, como nas Capitais nordestinas, houve um aumento dos crimes patrimoniais e da sensação de medo, que levou a população a circular com suas armas e consequentemente à um crescimento dos homicídios na Região. Não havia “clima” para falar em desarmamento, ao contrário do Sudeste, onde a estabilidade e mesmo queda de alguns crimes contribuiu para o sucesso da nova Lei.

Em linhas gerais, isto foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios; o estrago é feito pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na mão dos criminosos; portar armas aumenta o risco de ser ferido ou morto num assalto; tanto a Lei 4937/97 quanto o Estatuto do Desarmamento tiveram efeitos significativos sobre os homicídios em São Paulo; estes efeitos são tanto maiores quanto melhor for a implementação e mais favorável a conjuntura.

Nestes 30 anos de segurança pública, não encontrei nenhuma outra medida ou política pública que tivesse efeitos tão significativos sobre a criminalidade quanto o Estatuto teve. Agora o lobby das armas, aproveitando a conjuntura anti-governo, quer acabar com umas das poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país. Pouco adianta falar em Pacto para a redução dos homicídios se o Estatuto for revogado. Os homicídios irão retomar com toda a força a trajetória linear de crescimento observada desde os anos 80 até 2003. Foi o que ocorreu durante a farra das armas. É o que vai acontecer novamente caso o Estatuto seja revogado, na convicção quase unânime da comunidade acadêmica que se debruçou sobre o tema. Se está ruim com ele, ficará muito pior sem.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Estatuto do Desarmamento - entrevista antiga, mas acho que ainda válida neste contexto

Túlio Kahn é doutor em ciência política pela USP e considerado um dos principais criminólogos do país. Além dos estudos sobre o tema, Kahn trabalhou 2 anos na Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, é ex-coordenador de pesquisa do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) Foi pesquisador do NEV-SP e diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública (DECASP) no Ministério da Justiça no final do governo Fernando Henrique, para o qual ajudou a escrever o Plano Nacional de Segurança Pública. Atualmente é coordenador de Analise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Também faz parte do conselho do Instituto Sou da Paz e tem participado da campanha pelo SIM, mas sempre com argumentos lúcidos e evidências estatísticas, contribuindo para um debate racional da questão do desarmamento. Nesta entrevista ele procura responder vários pontos do debate, para o site do Instituto Sou da Paz.



Jornalista – A Campanha do Não tem enfatizado que ter arma é um direito e que o Estado não pode tolher este direito. Como o sr. Vê a questão do direito de quem quer ter uma arma de fogo ?

Kahn – em algumas circunstâncias especiais o Estado pode concluir que o custo deste pretenso direito para a sociedade é tão grande que é legítimo impor restrições. Foi o que aconteceu no Brasil recentemente com a obrigação de usar cinto de segurança nos veículos ou capacete para os motociclistas. O número de mortos era tão grande nestes acidentes que o Estado se viu obrigado a forçar os proprietários a se protegerem, mesmo contra a sua vontade.
Pois bem, o número de mortos por arma de fogo no Brasil é tão grande – cerca de 30 mil casos por ano – que se tornou, como os acidentes de carro, um problema de saúde pública, que deve ser tratado como uma epidemia: A questão é tão séria que chega a afetar as estatísticas de longevidade da população, além dos custos hospitalares, seguros, e o impacto social. Não é simpático cercear direitos mas se a causa é boa a população aprova; foi o que vimos com a Lei de Fechamento de Bares nos finais de semana para evitar homicídios, que conta com grande aprovação popular nos municípios onde foi adotada. Trata-se de defender os direitos da sociedade contra os direitos individuais e as milhares de mortes anuais por arma de fogo no Brasil justificam a medida. É um conceito antigo mas um pouco fora de moda, chamado de “bem comum”.

Jornalista – mas as armas usadas pelos bandidos não são compradas nas lojas, como argumentam os defensores do “não”. De onde vem estas armas ?

Kahn – Realmente, bandido não compra arma em loja e nem precisa pois nós somos a “loja” dos bandidos. Ao contrário do que se imagina, a maioria das armas apreendidas pela polícia em situações de crimes são armas nacionais e de baixo calibre. É falsa a noção de que os criminosos estão super armados com fuzis e metralhadoras importadas. Levantamos as características de 15 mil armas de fogo apreendidas pela polícia de São Paulo depois do Estatuto e o perfil é o mesmo de antes: 78% das armas eram fabricadas pela Taurus, Rossi, INA e Imbel, para ficar apenas nas mais representativas. Metade das armas são calibre .38 Os revólveres Taurus foram apreendidos em 67% dos homicídios em São Paulo e em 66% dos roubos consumados e tentados a residência !
Faço questão de dizer que não tenho nada contra estas empresas e que como gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública em 2002 comprei muitas armas destas mesmas empresas a pedido das polícias estaduais; mas elas devem fornecer armas apenas para as polícias e para as pessoas autorizadas a portar arma. Imagino que não deve ser agradável para estes empresários ler que seus produtos foram encontrados em 78% dos crimes praticados no Estado...

E como estas armas nacionais vão parar nas mãos dos criminosos, se bandido não compra arma em loja ? Para se ter uma ideia, só na Capital de São Paulo, segundo o Infocrim, cerca de 3.000 armas são subtraídas de seus proprietários legais ou extraviadas todos os anos. E certamente este número é maior pois só os proprietários legais vão até a polícia registrar a subtração ou a perda da arma, por medo de que ela seja usada em algum crime. O sujeito deixa a arma no porta luva do carro, o carro é furtado, e lá se vai mais uma arma para os criminosos. Deixa a arma no criado-mudo, a casa é furtada, e lá se vai mais outra.

Jornalista – a proibição da comercialização não vai aumentar o contrabando de armas e munição?
Não necessariamente. Tudo vai depender de conseguirmos restringir a demanda por novas armas e munição. O Estatuto impôs uma forte redução legal a esta demanda quando limitou ao máximo as categorias com autorização para porte e aumentou a punição – 2 a 4 anos – aos que portam irregularmente. Vai depender também de como for regulamentada a questão da compra de armas e munição para estas pessoas: o fornecimento se dará via Exército ? através da importação ? Desde que existam vias legais para a aquisição de armas e munição para as pessoas com direito ao porte, não creio que no aumento do contrabando e não temos evidência de que isto esteja ocorrendo no Estado. Mas admito que pode haver efeitos colaterais indesejados, como criminosos atacando policiais e outros locais onde existem armas, quando estas se tornarem mais escassas. Podem ocorrer também efeitos imprevistos positivos: hoje muitas quadrilhas “alugam” suas armas para outras quadrilhas realizarem suas ações. Este custo para os criminosos também pode aumentar.

Jornalista – Os defensores do “não” dizem que o Estatuto do Desarmamento será inócuo como política para redução da criminalidade. O que as estatísticas da SSP e de outras Secretarias mostram ?

Kahn – A situação no Estado de São Paulo é um pouco atípica pois os homicídios já estavam em tendência de queda desde 2000. Desde então os homicídios caíram quase pela metade em São Paulo, por uma série de motivos: criação do Infocrim, Disque Denúncia, Plano de Combate aos Homicídios do DHPP, Lei Seca em alguns municípios, crescimento da população prisional, etc. Mas São Paulo já praticava uma política de desarmamento desde metade dos anos 90. Por um lado a concessão de novos portes e registros caiu de 70 mil por ano em 1994, 95 para cerca de 3.500 em 2003; por outro lado, a Polícia Militar retirou das ruas cerca de 40 mil armas ilegais por ano neste período. Em resumo, restringimos o acesso a armas legais e tiramos as ilegais de circulação e este foi uma das razões pelas quais os homicídios caíram primeiro em São Paulo. O Estatuto do Desarmamento ajudou a aprofundar esta tendência de queda: estimamos que o impacto tenha sido de 14,8% sobre os homicídios no Estado, sem falar nos efeitos indiretos sobre os outros crimes, devido à redução do número total de armas em circulação.
Neste mesmo estudo, acompanhamos mês a mês o número de armas perdidas e o número de suicídios cometidos com arma de fogo – que são variáveis substitutas para estimar a quantidade de armas em circulação – e comparamos com os homicídios no mesmo mês. A análise revelou que as 3 séries estão relacionadas, sugerindo que quanto maior a circulação de armas, mais homicídios (o estudo completo pode ser lido no site da SSP, que é www.ssp.sp.gov.br)

Jornalista – quais outros impactos vocês observaram ?
Kahn - Quando estive em Oxford no segundo trimestre, analisamos tendências mensais de janeiro de 2000 a agosto de 2005 de diversas séries: número de armas apreendidas pela polícia, ocorrências de porte ilegal, homicídio doloso, latrocínios, armas perdidas, agressões intencionais com arma de fogo, que é um dado da área da Saúde. Usamos um modelo ARIMA em busca de “quebras significativas” nas séries e não por acaso, todas elas apresentam uma queda num período que vai aproximadamente de setembro de 2003 a fevereiro de 2004, ou seja, pouco antes e pouco depois de dezembro de 2003, quando o Estatuto entrou em vigor. Novamente, não acredito em coincidências; é uma forte evidência de que o Estatuto causou estas quedas.
Neste mesmo estudo, acompanhamos mês a mês o número de armas perdidas e o número de suicídios cometidos com arma de fogo – que são variáveis substitutas para estimar a quantidade de armas em circulação – e comparamos com os homicídios no mesmo mês. A análise revelou que as 3 séries estão relacionadas, sugerindo que quanto maior a circulação de armas, mais homicídios (o estudo completo pode ser lido no site da SSP, que é www.ssp.sp.gov.br)

Quanto aos outros Estados, existem 2 estudos sobre o impacto do Estatuto nos homicídios: um realizado pela Unesco e que mostra uma queda inédita das mortes depois de anos de crescimento contínuo, em 18 Estados, em 2004, sugerindo que mais de 5 mil vidas foram poupadas pelo e outro do Ministério da Saúde, diagnosticando o mesmo fenômeno e apontando uma queda de 8% com relação a 2003.. É difícil argumentar que seja apenas coincidência.

De um lado temos então a Unesco, o Ministério da Saúde, o Ministério da Justiça, a SSP-RJ, a SSP-SP, etc. afirmando que o Estatuto trouxe resultados positivos para a redução da criminalidade. Os dados e as metodologias utilizados são públicos e estão na Internet para quem quiser checar. Do lado do “não” , temos as empresas de arma e um monte de material copiado da NRA – National Rifle Association – sugerindo que o controle de armas é ineficaz.... cada um escolha em quem acreditar.

Jornalista – E para a polícia de São Paulo, houve alguma mudança ?

Kahn – Até 1997 portar uma arma ilegal, mesmo com numeração raspada, era mera contravenção penal. A polícia parava muitos bandidos com armas nas ruas mas não podia fazer nada porque o bandido não estava cometendo nenhum crime naquele momento, quer dizer, não era um flagrante, embora houvesse forte desconfiança de que aquela pessoa fosse usar a arma num crime. A arma era apreendida mas o portador ia embora e nada acontecia com ele. Depois de 1997 virou crime mas ainda assim, por ser punido a menos de 2 anos, o suspeito respondia a um inquérito e ou “termo circunstanciado” mas as implicações não eram graves. Com o Estatuto, se alguém for pego com arma pega 3 anos de prisão, sem direito a fiança. Para a polícia está sendo ótimo – não é por acaso que o Comandante Geral da Polícia Militar de São Paulo está a favor do desarmamento – pois mesmo que um criminoso não seja pego no flagrante criminal, é possível tirá-lo de circulação apenas por estar portando uma arma !

Jornalista – É possível saber que tipos de homicídios estão em queda, pois , se os bandidos não foram desarmado e só os cidadãos de bem entregaram suas armas, como atribuir esta queda ao Estatuto ?

Kahn – Em primeiro lugar é preciso deixar claro que o efeito do Estatuto não se resume ‘a entrega de 430 mil armas ao governo federal. Muito mais importante foi o fato de que – com a punição de 2 a 4 anos de cadeia para o porte ilegal – grande número de proprietários deixou de circular com as armas, guardando-as em casa. Por isso não acho que haja necessariamente uma relação direta entre Estados que mais entregaram armas e queda dos homicídios, pois não sabemos ao certo qual era o estoque de armas em cada lugar e que porcentagem deste estoque ficou apenas guardada. Também não existem dados qualitativos que nos ajudem a estabelecer que tipo de morte foi evitada, mas a ideia dos defensores do desarmamento sempre foi de que o impacto seria mais forte sobre os crimes fúteis, passionais, etc.
Neste caso, só podemos raciocinar por exclusão: sabemos que as mortes durante roubos (latrocínios) são cerca de 5 % e que se somarmos os casos de “resistência” (mortes em tiroteios entre policiais e bandidos) e os mortos em chacinas (que frequentemente tem causas ligadas ao crime) temos algo em torno de 12% das mortes. E as outras cerca de 88%, em que circunstâncias ocorrem ? Temos evidências indiretas de que boa parte delas são de natureza interpessoal e que não envolvem criminosos. Nos EUA estima-se que metade dos assassinatos sejam interpessoais, assim como boa parte das agressões e estupros. Este é um padrão nos crimes contra a pessoa. Além disso, repare que a maioria dos homicídios ocorrem nas noites e nos finais de semana, o que é um indicador de crime entre pessoas que se conhecem. Das vítimas que tiveram o laudo requisitado pela polícia, 42% apresentavam resíduo de álcool no sangue, o que também é evidência de crime fútil, passional. Quando o cadáver apresenta vários tiros e localizados em regiões letais, suspeita-se de homicídios criminal devido a forte intencionalidade, mas boa parte dos cadáveres analisados tinham apenas 1 tiro e em região não letal, sugerindo fraca intencionalidade por parte do autor.
Ninguém pode dizer com certeza qual é a proporção -dentro destes 88% de homicídios que não são latrocínios, roubos e chacinas – que são fúteis ou passionais, mas estas evidências sugerem que sejam muitos.

Jornalista – Quer dizer que mortes durante assaltos são só 5% do total ?

Kahn – Isso mesmo, em 2004 foram 8900 homicídios no Estado e cerca de 450 latrocínios. E, se analisarmos como estas mortes ocorreram, veremos que boa parte das vítimas morreu precisamente porque o criminoso pensava que elas estavam armadas e iriam reagir. No susto, a pessoa foi tirar o cinto de segurança ou colocar a mão no bolso para pegar a carteira e não conseguiu comunicar sua intenção. O bandido pensa que a vítima vai pegar uma arma e atira antes. Note que os latrocínios também estão em queda em São Paulo e isto pode estar ocorrendo justamente porque o bandido sabe que agora é menor a probabilidade de que a vítima esteja armada. Se eu for um dia assaltado no sinal, quero que o ladrão saiba que não estou armado pois se ele achar que eu estou meu risco é muito maior.

Jornalista – qual é o perfil hoje dos homicídios em São Paulo ?
Kahn – acabamos de terminar um levantamento com base no Infocrim de 584 homicídios ocorridos entre abril e setembro de 2005 e o perfil ainda é bastante parecido com o que as outras pesquisas já levantaram: 94,7% das vítimas são do sexo masculino, armas de fogo foram o instrumento utilizado em 77,9% dos homicídios, e as facas e instrumentos cortantes em 9,8%, seguida dos objetos contundentes em 4,3% dos casos. O mais interessante foram as informações que extraímos da leitura de cada um dos históricos, tentando analisar qualitativamente os casos: em 36,4% dos casos válidos (ou 14,2% do total de casos) levantamos indícios de que os crimes não foram premeditados pelos autores, mas cometidos no calor dos acontecimentos.
Com respeito ao relacionamento entre autores e vítimas, os casos envolvendo esposos, namorados, parentes, vizinhos e amigos (ou seja, interpessoais) somam 21,3% dos casos válidos (7,4% do total da amostra). Os desconhecidos que se encontram casualmente na rua, num bar ou acidente somam 12,4% dos casos válidos (ou 4,3% do total). Os incidentes classificados como “fúteis” ou “passionais” somam 35,9% dos casos válidos (ou 9,2% do total). A pesquisa não é definitiva pois infelizmente os Boletins de Ocorrência não trazem informação suficiente para identificar a motivação, mas os dados jogam alguma luz sobre como ocorrem aqueles homicídios que sabemos não serem latrocínios, chacinas ou resistências. Se as classificações sobre premeditação, relacionamento entre autor e vítima e motivação forem corretas, então os crimes interpessoais representariam algo em torno de 1/3 dos homicídios em São Paulo.
Note-se que o DHPP traz em seu anuário diversas características dos homicídios investigados pelo Departamento e que parecem confirmar o encontrado nesta pesquisa, quando mostra, por exemplo, que em 80% dos casos a vítima e o autor do homicídio moravam a menos de 1 Km de distância, o que também é uma evidência indireta de crime interpessoal. Mas o DHPP trabalha apenas com casos de homicídio de autoria desconhecida, enquanto o levantamento com base no Infocrim leva em conta todos os homicídios, inclusive de autoria conhecida.


Jornalista – E esta estória de que o risco de quem reage com arma é maior. As pesquisas são confiáveis ?
Kahn – Em parte, pois as pesquisas não levam em conta aqueles casos de pessoas que reagiram e conseguiram afastar o criminoso. Nas estatísticas oficiais chegam apenas os casos que não deram certo, das vítimas que tentaram reagir a acabaram mortas e tiveram a própria arma roubada. Nos EUA eles perguntam nas pesquisas de vitimização se a pessoa tem arma e se usou esta arma para afugentar algum criminoso. Nunca fizemos este tipo de levantamento no Brasil mas sabe-se que as respostas também são enviesadas: por conta da sensação de insegurança as pessoas vem perigo em todos os lugares e as vezes alguém armado vê alguém “suspeito” na rua, mostra que está armado e acha que se safou de um crime quando o sujeito ia apenas pedir um trocado...O fato é que nem as estatísticas oficiais nem as pesquisas de vitimização são ideais para mensurar a eficácia. O estudo deve ter um “design” mais sofisticado, por exemplo, comparando longitudinalmente um grupo de residências onde existem armas com outro grupo de controle, com características similares, onde não existe arma. Conheço apenas um estudo norte-americano feito desta maneira, com dois grupos de residências num mesmo bairro pobre e que concluiu que nas residências com arma, o risco era cerca de 3 vezes maior de que algum membro da família sofresse um acidente, se suicidasse ou fosse morto por alguém da própria família, comparado a casa sem arma.

Jornalista – O Sr. Não acha a arma eficaz em nenhuma circunstância ?

Kahn – A única circunstância em que imagino o proprietário pode levar vantagem é no caso de quem mora numa casa e percebe com antecedência que alguém está tentando invadir o local. Neste caso há uma chance de que a vítima consiga espantar o assaltante porque ele não foi pego de surpresa e teve algum tempo para esboçar a reação, o que é improvável no caso de um roubo no trânsito. Os ladrões sabem ou logo vão perceber que a maioria dos proprietários de arma simplesmente não entregou sua arma ao Ministério da Justiça mas estão com elas em casa...Os ladrões não vão sair por ai invadindo residências porque não há garantia nenhuma de que a casa não tenha arma ou outro equipamento de proteção. Lembre-se que apenas 430 mil armas foram devolvidas enquanto as estimativas falam de um estoque de 15 a 20 milhões de armas no país. Pode funcionar em algumas circunstâncias, mas vale a pena o risco ? Existem alternativas preventivas, como um alarme ou câmera – que hoje se compram em supermercados – ou mesmo o bom e velho cão de guarda, que além de tudo é uma ótima companhia.

Jornalista – E o que dizem as evidências internacionais de países que adotaram restrições a armas de fogo, como Inglaterra e Austrália ? Quais foram os resultados ?

Kahn – Acho estas comparações sempre um pouco complicadas pois a situação de cada país é única, a começar pelo volume de homicídios, que é muitas vezes maior no Brasil. A pesquisa Crime Trends de 2000 da ONU relata que na Austrália o número de homicídios intencionais cometidos com arma de fogo foi de 54 em 1998, 62 casos em 1999 e 59 casos em 2000. Na Inglaterra e Gales foram 49 casos em 1998 e 62 no ano seguinte. Os únicos casos que seriam comparáveis ao Brasil seriam de países como a Colômbia, África do Sul ou Tailândia, onde ocorrem também milhares de assassinatos todo ano.
Para se ter uma ideia, as cerca de 5 mil vidas poupadas pelo Estatuto em 2004 equivalem, ao total de homicídios somados em 2000 na Austrália (59), Bulgária (63) Canadá (165), Chile (27), Dinamarca (14), Alemanha (384), Hungria (44), Lituânia (83), Nova Zelândia (7), Polônia (166), Portugal (84), Espanha (97), Suíça (40), Uruguai (84), México (3.589) e Zimbábue (598). ( 7º United Nations Survey of Crime Trends 1998 -2000 – Total Recorded Intentional Homicides committed with a firearm).
Apenas as vidas salvas pelo Estatuto – previa-se 37.000 mortes para 2004 e tivemos 32.000 – somam quase o equivalente ao total de mortos por arma de fogo nestes 16 países !! Então nosso contexto é totalmente diferente e a experiência destes países é totalmente diversa, não só pela magnitude das mortes, mas pela proporção de homicídios cometidos ou não com armas, pela proporção de homicídios cometidos ou não por criminosos, pela relação entre homicídios e suicídios e diversos outros fatores.
As maiores diferenças, contudo, estão no tipo de sociedade: as armas não fazem estragos na Suíça ou na Dinamarca mas em contextos como o brasileiro, colombiano, mexicano e sul-africano – sociedades desiguais onde se viu um crescimento acelerado dos grandes centros urbanos, com elevado desemprego, cultura de resolução violenta de conflitos e elevada disponibilidade de armas e álcool. Portanto não adianta comparar “bananas” e “maçãs”. Armas e álcool são “elementos criminógenos” ou seja, na presença de um contexto já violento com das periferias de São Paulo, Rio e Espírito Santo, eles exponenciam a violência.

Jornalista- Mas num contexto violento, quem quer matar não precisa de arma de fogo. Pode usar uma faca ou qualquer outra coisa como arma.

Kahn – isto não é totalmente verdadeiro. Muita gente que mata com arma de fogo não mataria com uma faca ou porrete porque isto exige contato físico entre agressor e vítima, exige força física ou destreza e causa uma morte “suja”, com sangue e tripas para todos os lados. Muitas pessoas não têm estomago para isso, mas tem para apertar um gatilho ‘a distância. Além disso a chance de uma pessoa escapar com vida de uma lesão provocada por faca ou outros meios é maior do que o provocado por um ferimento por bala. Então é possível que algumas pessoas realmente dispostas a matar o façam de qualquer forma, mesmo sem arma de fogo, mas muitos desistirão do intento.


Jornalista – As pessoas criticam que o governo do PT fez pouco pela segurança e que o desarmamento dos cidadãos de bem foi o único projeto do governo neste setor e que a medida foi pensada para beneficiar as invasões do MST

Kahn – O projeto do Estatuto apenas foi aprovado no governo Lula mas a concepção remonta ao governo Fernando Henrique. Como vimos, a discussão sobre o controle das armas começou em 1997, quando o porte ilegal passou de contravenção a crime, e fazia parte do Plano Nacional de Segurança Pública de 2000. Faço parte do governo do PSDB – o governador Alkimin e o prefeito Serra já se colocaram claramente a favor do SIM - , acho que a gestão do PT na segurança é sofrível pois a Fazenda cortou pela metade os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública mas voto a favor da proibição porque o projeto transcende a questão partidária. Já ouvi as versões mais ridículas sobre a origem do Estatuto: seria obra de uma “conspiração” contra o Brasil tramada pela ONU, pela indústria bélica norte-americana, pelo PT/MST, pelos judeus...Estas teorias conspirativas são uma idiotice e dão uma boa ideia do tipo de gente e interesses por traz destes boatos; o triste é que muita gente desavisada cai neste tipo de argumento.


Jornalista – alguma mensagem final para os eleitores antes do referendo ?
Kahn – Vamos deixar para a polícia a tarefa de combater os criminosos. O cidadão de bem já faz muito se não comprar uma arma que pode depois passar para o mundo do crime e que num momento de descontrole, pode ser usada contra algum conhecido ou parente. Na verdade vamos estar dando uma mensagem sobre o tipo de sociedade que queremos construir para o futuro: uma sociedade sem armas e com o Estado aparelhado para combater a criminalidade ou uma na qual cada um vai se armar até os dentes para se tentar se defender sozinho, quase sempre com resultados funestos. Este último tipo de sociedade é um retorno ao “estado de natureza” hobesiano, a luta de todos contra todos. Eu escolho o primeiro tipo de sociedade, pela vida, pelo SIM.

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