quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Meia volta, volver: o fim da intervenção no RJ e tendências criminais para 2019




Encerrou-se hoje oficialmente, 27 de dezembro, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Ela teve início em fevereiro de 2018 e durante estes 11 meses investiu 890 milhões de reais nas polícias estaduais, o que representa cerca de cinco vezes o orçamento anual da polícia carioca. O General interventor ganhou hoje sua medalha e sai, segundo ele próprio, com a missão cumprida.

Apesar da carência de dados atualizados nacionais, já é possível fazer algumas observações sobre o desempenho da medida, comparando com desempenho de alguns estados no mesmo período.

Antes é preciso fazer uma rápida digressão sobre a tendência criminal nos anos anteriores, para entendermos melhor o contexto. Em análises anteriores mostramos com gráficos como a variação da criminalidade, desde a crise de 2014, vem se assemelhando a um formato de “W”: pico em 2014, queda em 2015, nova elevação em 2016, queda em 2017 e 2018. Sendo correta a análise, estamos chegando ao fim do período de queda e começaremos a observar uma inversão de tendência em 2019. Em alguns estados, já é possível observar a desaceleração da queda, tanto de roubos quando de homicídios.

Voltando ao caso carioca, enquanto a maioria dos estados iniciava um período de queda dos roubos em 2017, no Rio de Janeiro os roubos estavam em forte crescimento, destoando do cenário geral. De todo modo, quando a intervenção federal foi decretada em março de 2018, observe-se que os roubos já estavam desacelerando no Rio, acompanhando timidamente a tendência “nacional”.

A tabela abaixo traz a variação dos roubos por Estado, com relação ao mesmo período do ano anterior. Suavizamos as variações tomando médias móveis de 3 meses, para ilustrar melhor a tendência e estimar os dados de dezembro, ainda não publicados na maioria dos Estados.






A última linha traz a variação média dos roubos, pegando o período de março a dezembro de 2018. Em média, os roubos caíram 17% neste período, nos estados analisados (o que explica em parte a queda dos homicídios, como veremos no próximo quadro). No Rio de Janeiro, a queda no período foi de aproximadamente 9%, menor do que a média geral. Com efeito, dos estados analisados, apenas Bahia e Amazonas tiveram um desempenho pior do que o carioca. Em Minas, Mato Grosso, Goiás e Santa Catarina, a queda dos roubos chegou a 30% com relação ao mesmo período do ano anterior.

Assim, no que tange aos roubos, os interventores tiveram que lidar com uma situação pregressa mais aguda. Mas já entraram no Estado com numa tendência de queda e nada parece indicar que tenham influído significativamente nesta tendência. Esta ausência de impacto também é evidenciada quando acompanhamos as tendências de roubo tomando apenas RJ e SP, que são bastante integradas (ou cointegradas).

O gráfico abaixo compara a variação dessazonalizada dos roubos em ambos os estados. Note-se no gráfico: 1) o formato de “W” depois de 2014; 2) a desaceleração da queda dos roubos nos últimos meses e 3) a similitude de comportamento das curvas de RJ e SP, mesmo durante o período da intervenção federal.



O comportamento dos homicídios foi bastante parecido ao dos roubos. A análise é confundida por conta de surtos de homicídios provocado pela guerra de facções em alguns Estados, como Amazonas e Ceará. Mas de modo geral observamos um crescimento nacional moderado dos homicídios em 2017, desacelerando a partir de outubro de 2017 até se transformar em queda em 2018.

Se tomarmos o período de março a dezembro de 2018 – período da intervenção - a última linha nos indica que os homicídios dolosos caíram em média 15% nos Estados analisados. Novamente aqui, vemos que a) o RJ acompanhou esta tendência de queda nacional, b) que o processo de queda é anterior à intervenção federal e c) que a magnitude da queda é menor do que a dos demais estados (-4,4%). Apenas o CE teve uma queda tão baixa quanto o Rio no mesmo período, mas isto por conta da excepcionalidade do surto criminal no Estado, já superado.

Aqui também, não é possível observar nenhum impacto que possa ser atribuído especificamente à intervenção federal. Como no caso dos roubos, o Rio parece ter seguido a tendência nacional de queda e sua tendência inercial anterior. Em ambos indicadores, o desempenho foi inferior à média dos demais Estados.



Missão cumprida? É preciso analisar um conjunto de indicadores mais amplos para analisar a eficácia da Intervenção, aguardar o impacto dos investimentos efetuados e avalia-la também com relação a outros aspectos conceituais, como a questão do legado estruturante, (ou ausência dele), do acirramento da violência policial, da sensação de segurança, entre muitos outros ângulos e abordagens possíveis.

Por enquanto, o que podemos inferir - com base limitada nos indicadores roubos e homicídios – e na comparação com os demais estados, no período analisado, é que não é possível até o presente momento notar mudanças significativas de tendências nas séries históricas, que possam ser atribuíveis à Intervenção Federal.

É possível que num futuro próximo vejamos algum efeito dos 890 milhões investidos no Estado, mas até o momento estes investimentos não parecem ter afetado roubos e homicídios. As quedas no Estado são maiores quando analisamos isoladamente roubo de cargas e latrocínios, mas infelizmente não dispomos de dados comparativos dos outros estados para comparar com o desempenho carioca.
As tendências no Rio de Janeiro parecem antes acompanhar as tendências nacionais, não obstante o Estado ter sentido de forma mais aguda que os demais o contexto da crise econômica de 2014, agravada pela crise fiscal e moral do Estado.

A recuperação lenta e gradual da economia parece ser a explicação de fundo para a queda tanto dos roubos quanto dos homicídios na maioria dos Estados em 2018. E da economia, em grande parte, dependerá a continuidade ou interrupção deste ciclo.


terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Mudanças no perfil dos presos nas últimas décadas




Cada sociedade e época escolhem seus inimigos públicos. Quando olhamos as estatísticas prisionais no tempo, podemos ver parte desta escolha.

Os dados de perfil prisional refletem os tipos de crimes mais comuns em cada momento, mas também os medos e sensibilidade sociais, espelhados nas leis e nas práticas do sistema de justiça criminal. O que era considerado grave num determinado momento deixa de ser no seguinte e o que antes era tolerado passa a ser reprimido. Num dia a lei seca proíbe a bebida alcoólica, no outros estamos divulgando propaganda de cerveja na televisão.

Na tabela abaixo compilamos as porcentagens de prisões por natureza criminal no Estado de São Paulo, com base nos censos penitenciários realizados desde a década de 50 até 2016. Trata-se de um “censo” das unidades prisionais e não dos presos, como é sabido. E em cada ano, uma quantidade maior ou menor de unidades prisionais participou do levantamento. São Paulo tem historicamente um terço da população prisional do país, de modo que representa uma boa amostra das tendências nacionais, embora os Estados por vezes tenham suas idiossincrasias. Não obstante estas fragilidades, quando examinamos a distribuição percentual destes nove delitos no tempo, conseguimos identificar claramente, digamos assim, o espírito de cada época.

Nos anos 50 e 60 os presos cumprindo pena por furto predominavam no sistema prisional, chegando a representar quase metade das naturezas criminais em 1964. O segundo grupo era formado pelos homicidas, a maior deles movidos por motivos passionais e em seguida aparecia o grupo dos presos por lesões corporais dolosas. Note-se ainda a ínfima presença dos condenados por tráfico de drogas. Os dados falam de um período anterior à disseminação das armas de fogo e das drogas, onde a população prisional era relativamente pequena e o sistema de justiça criminal se dava ao luxo de encarcerar pessoas de reduzido potencial ofensivo.

Os anos 70 aos 80 são considerados anos de explosão da criminalidade no país, que cresceu de modo acelerado e desorganizado, inflando as periferias dos grandes centros urbanos. Período marcado pelo desenvolvimento econômico, migração da cidade para o campo, aumento da população jovem e crescimento das desigualdades sociais, entre outras transformações sócio econômicas e demográficas.
No sistema prisional, os roubos vão se tornando mais frequentes do que os furtos e são motivo de mais da metade das condenações. Aumenta a porcentagem de latrocidas e a de traficantes, ainda de forma tênue. Em contrapartida, diminuem percentualmente os homicidas e condenados por lesões corporais dolosas. É possível especular que o crescimento da violência e da população prisional tenha tornado o sistema de justiça criminal mais seletivo, passando nesta fase a priorizar crimes mais graves, deixando parcialmente de lado a investigação e punição de crimes de menor potencial ofensivo.

Os anos 90 são marcados pelas crises econômicas e relativa estabilização das tendências demográficas e sociais e as estatísticas prisionais revelam basicamente uma continuidade das tendências anteriores. Condenados por lesões corporais e estelionato tornam-se residuais dentro do sistema. Homicidas estabilizam-se na casa dos 10% da população prisional enquanto furtadores vão sendo progressivamente substituídos pelos roubadores.

Porcentagem de presos, por modalidade criminal

Fonte: Censos penitenciários / SAP / DEPEN

A última mudança significativa ocorre por volta dos anos 2000, quando a presença dos traficantes de droga aumenta abruptamente, passando a representar cerca de um terço da população prisional paulista. A lei de drogas de 2006, ao não diferenciar entre usuários, pequenos e grandes traficantes, contribuiu em parte para este resultado. Em contrapartida ao aumento de “traficantes”, roubadores caem de metade para um terço dos condenados e furtadores reduzem ainda mais sua presença, para menos de 20% da população prisional. As condenações por lesões corporais praticamente desapareceram nos últimos anos. Note-se finalmente que durante praticamente todo o período os crimes sexuais mantiveram-se em proporções baixas e estáveis.

O sistema prisional passou por grandes mudanças desde os anos 50. Ele cresce a taxas muito mais aceleradas do que o crescimento populacional e este aumento foi em parte provocado pelo crescimento das condenações por tráfico e pelos presos provisórios. Os criminosos tornaram-se mais jovens e mais violentos e boa parte deles está hoje vinculada à alguma facção criminosa. Este novo perfil, como discutido, foi em parte uma escolha da sociedade, que elegeu os traficantes como os novos vilões, ainda que a maioria deles seja composta de delinquentes primários pegos com pequenas quantidades de drogas, oferecendo pouco risco à sociedade.

E foi uma escolha ruim. Analisando as tendências anteriores, observamos que caminhávamos na direção onde a pena de prisão em regime fechado seria reservada apenas para criminosos violentos e reincidentes. Como deve ser quando os recursos do sistema prisional são escassos e existem alternativas mais eficientes à disposição, como as penas alternativas. Evidência deste fenômeno é a queda progressiva do percentual de condenados por lesões corporais, estelionatos e furtos. Estas três categorias juntas chegaram a representar mais de 60% da população prisional e hoje representam menos de 20%. Houve um entendimento de que o sistema de justiça criminal deveria focar seus esforços nos homicidas, latrocidas, roubadores e criminosos sexuais. Em meados dos anos 90 este grupo chegou a representar 77% das modalidades criminais analisadas, caindo posteriormente para 50%.

O equívoco começou com a Lei de Drogas, cujo efeito foi contrário ao originalmente previsto, por conta de uma sociedade (e de um judiciário) atemorizada pelo crescimento da criminalidade. Enquanto na última década países desenvolvidos optaram por explorar a venda de maconha para fins recreativos, tomamos a outra direção, inundando cadeias superlotadas com jovens pegos com quantidades pequenas de drogas, na ponta da hierarquia do tráfico, com baixíssima periculosidade. Eles são a massa de manobra das facções prisionais.

Mas como mostram as estatísticas históricas do sistema prisional, a sociedade e o sistema de justiça criminal tem a capacidade de mudar estas tendências e retomar o caminho anterior. Não temos muitos presos e poucas vagas; o problema está em que prendemos mal. Prisão em regime fechado é para criminosos violentos e reincidentes. Para grandes traficantes, da alta hierarquia do crime. Ganhamos mais fazendo os demais pagarem seus erros de maneira mais barata e inteligente.



quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Pesquisa sobre Unificação das Polícias e Ciclo Completo



Resultado da pesquisa feita com mais de cinco mil policiais de todo o país, sobre o tema unificação das polícias e outros aspectos organizacionais. Maioria é favorável à unificação e ao ciclo completo de polícia. Mas existem diferenças de opiniões entre as instituições, entre a cúpula e a base e entre regiões. Não temos “duas-meias polícias” no Brasil. Dados sugerem que tem quatro-quartos de polícia.

O apoio médio à unificação é de 71,9% mas a média esconde as diferenças entre as quatro polícias: na cúpula, 43,1% dos Delegados e 59,3% dos policiais apoiam a medida. Na base, 61,1% dos policiais civis e 79% das praças apoiam a unificação.




Detalhes no link abaixo:

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Trata aos outros como queres ser tratado: indicadores de abuso policial no Brasil



Em 2015 o Conselho Nacional de Justiça lançou o projeto Audiência de Custódia, onde o preso é apresentado rapidamente ao juiz, no caso de uma prisão em flagrante. Na audiência – feita na presença do MP, Defensoria ou advogado do preso, o juiz analisa a legalidade da prisão, sua permanência e eventuais abusos cometidos no momento da prisão, como torturas ou maus tratos.

Analisando as estatísticas coletadas entre 2015 e junho de 2017, no qual foram realizadas 258 mil audiências de custódia, chama-nos a atenção que em mais de 12 mil casos (4,9%), houve a alegação do preso de que houve algum tipo de violência no ato de prisão. Esta porcentagem varia de 0% de casos no Mato Grosso do Sul a 38% dos casos no Amazonas. Assim, este número provavelmente reflete as distintas práticas dos sistemas de justiça criminal durante as audiências: é bastante provável que não haja uma padronização e que em alguns estados os juízes perguntem com mais insistência sobre os maus tratos ou que em alguns estados as condições para relatar os maus tratos por parte dos presos sejam mais adequadas do que em outros.

Podemos imaginar que por um lado, presos tenham uma tendência a relatar abusos para prejudicar seus algozes, o que inflacionaria a porcentagem de relatos. Por outro lado, o temor de represálias em audiências públicas e a falta de anonimato pode levar à subnotificação de casos. Assim, seja por ausência de padronização no judiciário ou por razões que podem levar à super ou subnotificação de casos, não é possível confiar demasiado nas estatísticas produzidas durante as audiências de custódia para estimar a incidência ou prevalência de maus tratos no Brasil. Talvez aqui o exame pericial de corpo de delito fosse um indicador mais seguro do eventual abuso do que testemunhos coletados durante a audiência.

De todo modo, há uma série de outros indicadores conhecidos que sugerem uma incidência elevada de práticas policiais abusivas no Brasil, não só com relação aos suspeitos de crimes, mas com relação à população em geral. Na tabela abaixo reproduzimos alguns destes indicadores, por Unidade da Federação.



Na primeira coluna vemos a % de presos que alegaram ter sofrido abusos durante as audiências de custódia (fonte: CNJ) e na segunda coluna está a taxa de letalidade policial média para os anos de 2015 e 2016, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em ambos os casos trata-se de indicadores de violências policiais com relação a suspeitos de crime.

Nas três ultimas colunas temos indicadores de abusos com relação à população em geral e que foram coletados pela Pesquisa Nacional de Vitimização do Ministério da Justiça, realizada em 2014. A pesquisa de vitimização perguntou quem sofreu agressão física nos últimos 12 meses e, quando o agressor era conhecido, se se tratava de agressor policial. Perguntava ainda se o entrevistado teve algum tipo de contato formal com a polícia no último ano e, caso positivo, se o policial agiu com agressividade durante o encontro. Observe-se que não são indicadores subjetivos, mas baseados na experiência dos entrevistados com a polícia. Estamos falando aqui da população em geral e não apenas de suspeitos de crimes. Finalmente, a última coluna relata a porcentagem dos entrevistados que afirmam ter medo da Polícia Militar.

No agregado temos 4,9% dos suspeitos relatando maus tratos policiais durante as audiências de custódia, uma taxa de letalidade de 1:7 mortos por 100 mil habitantes, cerca de 2% dos autores das agressões físicas identificados como policiais, 7,9% dos abordados relatando que policiais foram agressivos durante a abordagem e 30% da população relatando ter medo da PM.

Estamos falando de médias e a situação pode ser bastante pior em alguns estados. A Alegação de maus tratos está acima de média no Amazonas, Alagoas e Mato Grosso. A taxa de letalidade policial acima da média no Rio de Janeiro, Amapá, Bahia e Goiás. Agressores identificados como policiais chegam a 5% no Amapá e contatos agressivos superam os 12% no Pará, Amazonas e Amapá. Como “resultado” das práticas anteriores e outras variáveis, a porcentagem dos que temem a polícia supera os 40% em estados como Sergipe, Ceara e Tocantins. A tabela esta ranqueada pela % dos que afirmam que tiveram um contato agressivo durante uma abordagem policial. Note-se que muitos estados que estão na parte superior da tabela estão também acima da média nos demais indicadores, sugerindo um padrão estadual generalizado de abuso. No outro extremo da tabela estão Estados onde a situação geral de abuso está relativamente mais sob controle, exceto por um ou outro indicador.

De um modo geral, os indicadores mostram um cenário geral de abusos e agressividades cometidos pelas polícias brasileiras. Esta agressividade se direciona não apenas aos suspeitos de crimes como para a população como um todo. Existe grande variabilidade regional, sugerindo que este tipo de comportamento não é inexorável e que é possível, através de políticas públicas, melhorar este padrão de tratamento.

São Paulo é um dos estados com melhor desempenho no que tange à redução da criminalidade, em especial dos homicídios, mas no que diz respeito aos abusos policiais aparece acima da média nacional em todos os indicadores, sendo relativamente mais abusiva que a polícia carioca, campeã de letalidade no país. Em ambos os estados, é possível que os indicadores criminais fossem menores se tivéssemos um padrão mais profissional de atuação policial.

A agressividade no tratamento com a população retira legitimidade e afasta a população das polícias. Informação é a matéria prima por excelência do trabalho policial e ela não flui quando a população teme e desconfia da polícia. As polícias se sentem desvalorizadas, mas esta valorização por parte da sociedade só virá quando as policiais oferecerem em contrapartida uma atuação eficiente e profissional. Uma população que se sente desrespeitada tende a não ver com bons olhos investimentos públicos em instituições que elas mais temem do que respeitam.



quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Uma radiografia das séries temporais de homicídios nos Estados entre 2004 e 2018





O rompimento entre o PCC e o Comando Vermelho em 2016 produziu uma série de episódios sangrentos tanto no interior das prisões como nas ruas de algumas grandes cidades brasileiras. Entre outros, tivemos os confrontos no Rio Grande do Norte e Roraima em 2016 e no ano seguinte as perturbações ainda maiores no Acre, Amazonas e Ceará. Estes episódios levaram alguns especialistas e interpretar o crescimento dos homicídios no Norte e Nordeste como fruto da guerra entre as facções. (Manso e Dias, 2018, A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.)

Com efeito, se analisarmos os gráficos das séries históricas de homicídio dos Estados das últimas décadas, é possível discernir diversos “pulsos”, ou seja, alterações intensas e transitórias nas séries de homicídios. Todavia, os gráficos nos mostram também que além dos pulsos existem tendências anteriores de crescimento na maior parte destes estados. (os gráficos completos que serviram de base a este artigo podem ser consultados no anexo)

Claro que não é apenas durante estes eventos dramáticos que ocorrem mortes decorrentes da briga entre facções criminais, que são recorrentes.  Assim mesmo, é digno de nota que o impacto real das mortes durante estes eventos transitórios no total dos homicídios é diminuto. Colocando os números em perspectiva, se tomarmos a quantidade de homicídios nos Estados entre 2004 e 2018, estes “pulsos” representam em média apenas 1% do total de mortes. Cerca de 3 mil mortes num universo de 300 mil. Vamos supor que o número de mortes real seja o dobro do número aqui estimado. Ainda assim estaríamos falando em algo em torno de 2% dos homicídios.

Para estimar este impacto tomamos nos gráficos a média de homicídios no período anterior e comparamos com a média de homicídios durantes os eventos. O mais sangrento deles teve lugar no Ceará, onde os confrontos entre facções que durou vários meses em 2017 provocaram cerca de 500 homicídios, além do número esperado.

Curiosamente, existem outros “pulsos” nas séries históricas que tem impactos superiores ao das brigas entre facções criminosas. Em São Paulo, em 2012, uma política de segurança de enfrentamento desastrosa produziu cerca de 400 mortes “adicionais”, revertendo momentaneamente uma tendência de queda que vinha desde de 2000. Impactos ainda maiores nas séries de homicídios podem ser encontrados, todavia, durante episódios de greves das polícias - especialmente greves mais prolongadas, envolvendo a Polícia Militar.



Uma greve policial em Santa Catarina em 2007 parece ter provocado um aumento de aproximadamente 600 mortos no Estado naquele ano. A greve em Pernambuco em 2017 cerca de 1000 mortos a mais e no mesmo ano, no Espírito Santo, algo em torno de 120 mortes acima da média habitual. Muitas destas mortes durante as greves policiais podem ter sido também praticadas pelas facções criminais, aproveitando para acertar contas passadas num momento de menor risco.

Em todo caso, não deixa de ser interessante observar que para os Estados, o impacto das greves policiais sobre a série de homicídios é tão grande ou mesmo maior do que o impacto das brigas entre facções. Em alguns anos, elas são um fator explicativo para o crescimento do número de homicídios e de crimes em geral, pois tem um impacto ainda maior sobre os crimes patrimoniais.

Eventos transitórios como brigas de facções e greves policiais, mesmo que intensos, não explicam, contudo, o grosso das 63 mil mortes anuais no país. Como insistimos há alguns anos, tendências seculares e águas mais profundas explicam as tendências históricas de longo prazo dos homicídios. Conjuntura econômica e águas mais rasas – como políticas de segurança - explicam outra parte deste quadro.

Uma hipótese alternativa, já repetida e detalhada em outros artigos – é que o crescimento dos homicídios, principalmente no N e NE, foi fruto indesejado do crescimento rápido da economia e da renda, que aumentou crimes patrimoniais, insegurança, armas em circulação e homicídios, num contexto de despreparo institucional do sistema de justiça criminal (contexto 1). A queda dos homicídios em alguns estados, especialmente do Sudeste, reflete um contexto diferente de crescimento econômico equilibrado, estabilidade dos crimes patrimoniais e da sensação de insegurança, num contexto de melhora de eficiência do sistema de justiça criminal e diminuição de armas em circulação. (Contexto 2)

Este padrão ajuda a entender a conjuntura criminal atual? Acreditamos que sim.

Passado o momento mais crítico da crise econômica de 2014, começamos a assistir nos anos seguintes diversos estados (doze) com quedas, por exemplo, nos roubos de veículos, invertendo a tendência de crescimento anterior. A melhora da conjuntura econômica pode explicar em parte esta inversão de tendência. Com a queda nos roubos, temos (em hipótese), uma queda na sensação de insegurança e na quantidade de armas em circulação, ajudando a diminuir os homicídios. Este padrão explicaria razoavelmente bem os movimentos de queda dos roubos e homicídios simultaneamente em AL, DF, GO, MG, PB, PR, RJ, RS, SC e SP. Note-se a presença de dois estados Nordestinos no grupo, formado basicamente por estados do Sul e Sudeste, pertencentes ao contexto 1.

Num outro extremo temos a continuidade do contexto 2 em outros Estados, com crescimento histórico e linear tanto do crime patrimonial quanto dos homicídios, como nos casos dos Estados de AC, PA, RN, TO e AM. A maioria da região Norte, com exceção do RN. Enquanto os Estados do Nordeste parecem ter acordado para a explosão dos homicídios e procurado traçar novas políticas de segurança, o Norte parece ainda inerte.

Estado
HD
DESDE
RV
DESDE
AL
CAI
2014
CAI
2016
DF
CAI
2014
CAI
2016
GO
CAI
2015
CAI
2016
MG
CAI
2016
CAI
2017
PB
CAI
2015
CAI
2016
PR
CAI
2008
CAI
2016
RJ
CAI
2004
CAI
2018
RS
CAI
2017
CAI
2015
SC
CAI
2018
CAI
2016
SP
CAI
2003
CAI
2014
AP
CAI
2016
NI

CE
CAI
2017
SOBE
2004
ES
CAI
2010
SOBE
2004
PE
CAI
2017
SOBE
2004
PI
CAI
2016
SOBE
2004
SE
CAI
2017
SOBE
2004
MT*
CAI
2015
SOBE
2011
MA*
CAI
2015
SOBE
2004
BA*
ESTÁVEL
2014
CAI
2015
RO
ESTÁVEL

CAI
2016
MS
ESTÁVEL

ESTÁVEL

RR
ESTÁVEL

SOBE
2014
AC
SOBE
2004
SOBE
2007
PA
SOBE
2004
SOBE
2004
RN
SOBE
2004
SOBE
2004
TO
SOBE
2004
SOBE
2004
AM
SOBE
2004
SOBE
2004
Fonte: SSPs
* capitais

Interessante observar um grupo intermediário de Estados que estão tendo queda dos homicídios de 2015 para cá, não obstante a continuidade do crescimento dos crimes patrimoniais, como o roubo de veículos. Neste grupo estão por exemplo CE, ES, PE, PI, SE, MT e MA. Observe-se que em pelo menos três destes Estados (CE, ES e PE) algumas gestões adotaram políticas de segurança específicas para lidar com os homicídios (Ceará Pacífico, Ocupação Social, Pacto pela Vida, etc.). Embora atrapalhados por brigas de facções e greves policiais, são exemplos de que o foco na diminuição dos homicídios surte efeitos, mesmo com a continuidade do crescimento dos crimes patrimoniais. Finalmente, um grupo de Estados onde a situação dos homicídios é estável, BA, RO, MS e RR, o que é um alento pois BA, RO e RR são estados do Norte e Nordeste, a maioria dos quais está enquadrada dentro do contexto 2 acima descrito.

O arcabouço teórico dos Contextos 1 e 2 parece assim dar conta de explicar, ao menos em parte, tanto momentos de aumento como de queda dos homicídios. Brigas de facções são eventos transitórios cujo impacto sobre o aumento dos homicídios é diminuto. Assim como diminuto foi o papel do crime organizado para explicar a queda dos homicídios em São Paulo.  

Os processos de queda dos homicídios recente observado em 18 Estados são lentos e graduais e pela sua morfologia sugerem antes a validade da teoria dos contextos do que alguma pretensa pax criminosa, algum acordão entre criminosos e governos para encerrar a violência. Mas este já é outro tema. Remeto os leitores interessados aos gráficos e dados que subsidiaram estas análises. Valem mais do que mil palavras!

Anexo:

https://www.researchgate.net/publication/328676074_Tendencias_de_homicidios_e_roubo_de_veiculos_nos_Estados_entre_2004_e_2018

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